Fazendo um apanhado geral sobre a origem da cachaça, encontrei a publicação de uma revista que gerou uma polêmica com um dos primeiros cachaçólogo de nossa cultura.
Os textos foram copiados na integra e postados aqui, de forma ao leitor ter uma visão clara daquilo que foi publicado.
Não se pode negar que seu berço foram os engenhos de cana-de-açúcar, mas os ancestrais vêm de muito longe. Portugueses já produziam aguardente a partir da uva cem anos antes da colonização do Novo Mundo, e no Brasil chegaram a importá-la em discretas quantidades. A “aguardente do reino”, como era chamada, em breve encontraria uma rival nacional, filha do engenho.
Muitas bebidas rústicas nasciam da primeira transformação da cana. As sucessivas fervuras que o caldo sofria, na busca da adequada purificação, forneciam apreciados licores. Se a primeira eliminava uma espuma grossa que caía pelas bordas das caldeiras e descia ralo abaixo para ser bebida pelos animais, da segunda caldeira a espuma era disputada pelos escravos do engenho para “fazerem a sua garapa, que é a bebida de que mais gostam”, conforme o cronista André João Antonil (1649 – 1716).
A última espuma liberada desse processo de purificação do caldo, designada “claros”, era misturada com água fria e produzia uma “regalada bebida”, muito refrescante e excelente para matar a sede, segundo Antonil. Esse “desejado néctar e ambrosia” era também servido aos cativos do engenho.
Cachaça e garapa são termos que começam a circular até a terceira década do século XVII, quando surgem as primeiras notícias da aguardente da cana-de-açúcar destilada em alambiques: é a “aguardente da terra”, em oposição à de uva, até ali dominante, importada de Portugal.
Em algum momento impreciso, ao que parece situado em meados do século XVIII, começou-se a chamar a aguardente da terra de cachaça. Em 1742, segundo Almeida Jr., “já se dizia cachaça por aguardente” em São Paulo. Isto sem falar nos neologismos de ocasião: nas Cartas Chilenas, Tomás Antônio Gonzaga criou, em fins do século XVIII, a expressão “cachaça ardente”.
E “ardente” não apenas pela sensação de calor que se seguia à sua ingestão, mas também por possuir “humores quentes” terapêuticos, produzindo efeitos benéficos em doentes. Mas do teto, ao que se sabe, não pingava.
Luciano Figueiredo e Marcello Scarrone
O cachaçólogo, enviou carta em 14 de fevereiro de 2008 a revista corrigindo e esta não é publicada.
A baboseira intitulada A origem da cachaça, atribuída ao Museu do Homem do Nordeste, da Fundação Joaquim Nabuco (Gilberto Freyre e Mario Souto Maior estão revirando-se nas sepulturas…), circula em arquivo anexado a mensagens na internet há alguns anos. Ainda não consegui descobrir qual inventivo e desocupado indivíduo construiu tanta asneira. Localizei, sim, o webdesigner que colocou imagem e som na falsa narrativa. Este, por sua vez, desconcertado, comigo desculpou-se, prometeu denunciar o erro ao redator do indigitado texto, mas não me informou o nome do criador da medonha estória. Tudo é ficção tola e inservível, fantasia para encantar, para enganar curiosos, gente interessada, até bem intencionada. A versão não tem fato, documento ou testemunha de onde pode originar-se. E não passa disto. Exaure-se em si mesmo, isto é, na sua própria inconsistência, em nada. Nenhum fundamento histórico ou científico. Nenhuma palavra, linha ou idéia se aproveita no tal arquivo que circula nos computadores.
Por outro lado, a matéria da Revista é falha, não é conclusiva e desinforma, porque:
1º) Portugueses, e outros povos, fabricavam, sim, aguardentes, mas jamais “cachaça”, o destilado do mosto fermentado do caldo, do melado, da rapadura ou do melaço da cana-de-açúcar (hoje, por lei, “cachaça” é apenas o destilado do mosto fermentado do caldo da cana-de-açúcar). O texto indecente que circula na Internet intitula-se A origem da cachaça (sic) e não da aguardente. Bebida da espécie “destilado” e pertencente à categoria das “aguardentes”, a Cachaça foi inventada no Brasil entre 1533 e 1534 pelo colonizador Martim Afonso de Souza e seus quatro sócios (três lusos e um holandês), em plena Mata Atlântica, nos três primeiros engenhos de açúcar construídos pelos cinco no Brasil (as primeiras indústrias do País), em São Vicente (hoje o local pertence a Santos): Madre de Deus, Santo Antônio e São Jorge, este conhecido, também como “dos Erasmos” ou “do Governador”, único do qual restam ruínas. Martim Afonso trouxe o primeiro alambique para a terra recém-descoberta, engenhoca utilizada na Península Ibérica desde o início da Idade Média, e destilou a cana, cujas primeiras mudas chegaram à nova terra pelas mãos de Gonçalo Coelho em 1502.
2º) Antonil, no clássico Cultura e Opulência do Brasil, descreve, passo a passo, o fabrico seiscentista e primitivo do açúcar, mas em nenhum momento trata de “cachaça” na acepção que temos, para designar a bebida nacional, que conhecemos e amamos. Ele emprega o termo para designar outra bebida, ou melhor um subproduto, um resíduo descartável do processo de fabricação do açúcar. Quando ele escreve “cachaça” está se referindo à escuma (espuma) eliminável, descartável, da primeira fervura do caldo no início do processo. E por que ele usa “cachaça”? Porque “cachaça”, apesar de ser uma palavra da língua portuguesa, termo generalizado na fala do povo do Brasil na segunda metade do Setecentos, não obstante um termo que denomina a bebida nacional, mesmo sendo uma criação linguístico-cultural genuína e absolutamente brasileira, brasílica – origina-se do espanhol “cachaza” que, na Península Ibérica, designava uma “bagaceira popular ou de baixa qualidade”. Sites e arquivos habitam a Internet oferecendo outras versões fantasiosas sobre a origem da palavra “cachaça”, todas ineptas. Os colonizadores e os primeiros brasileiros importaram a palavra e sua semântica para designar algo inferior, desprezível, no caso a escuma da primeira fervura que era dada às animálias. Observe-se que a palavra “cachaça” antes de denominar a nossa emblemática bebida, um símbolo nacional, serviu para chamar o lixo, o resto, a sobra. Compreenda-se a origem espúria que lhe foi dada através da diacronia da palavra. “Cachaza” nasceu e era usada no Velho Mundo, e depois foi aplicada aqui, para designar um produto inferior, pobre, subalternizado na cadeia industrial e na escala de valoração cultural. Eis uma das raízes, uma das causas histórico-culturais de discriminação, pré-conceituação, criminalização e patologização da cachaça na nossa sociedade. Antonil emprega fartamente mel, mel de cana, meles, garapa, melado, açúcar, água ardente (a nossa cachaça, palavra composta, escrita sem aglutinação) e nomes de outros produtos e subprodutos da indústria açucareira, para descrever processos e regimes, explicar fabricos, registrar produção e comércio. Porém “cachaça” ele escreve apenas e tão somente para denominar essa escuma residual, não alcoólica, destinada aos currais, jamais no sentido e na aplicação que foi generalizada a partir do Século XVIII e que temos hoje. Para não dizer que Antonil foi absolutamente coerente em toda a sua obra nesse mister, uma única vez ele escreve “cachaça” para não se referir a tal escuma, mas, sim, à “cachaça azeda” ou garapa azeda ou garapa doida ou cerveja de cana, que é o que conhecemos como mosto, mucungo ou quira, isto é, o caldo fermentado da cana-de-açúcar, que tem em torno de 12% de álcool ao volume a 20o Celsius. Entretanto, ainda não temos a “água ardente” com o nome de “cachaça”, referenciada por Antonil, resultado do ato de “estilar” (destilar) de que nos fala o jesuíta italiano.
3º) Demolindo o estapafúrdio texto que circula na Internet: “Pinga”, palavra já empregada muitas vezes por Antonil, antes dele já designava “porção ou parcela mínima de líquido que escorria, que gotejava, gota, gole, trago”, não só do caldo da cana ou de seus derivados, mas de qualquer líquido, alcoólico ou não. “Pinga” como sinônimo de cachaça aparece na fala do povo e nos documentos dos escrivães e cronistas desde a invenção da cachaça. Diz-se “pinga” porque pingava, e pinga, escorre, goteja, na ponta do alambique, e não do telhado, das ripas de senzala alguma, pois em senzala nunca se fabricou melado, açúcar, muito menos cachaça. O composto “Aguardente” ou “água ardente” é palavra medieval, pretérita ao surgimento da cachaça, porque já existiam outras aguardentes, como a bagaceira, o korn, o schnapps, a vodca, o gim, a genebra, a aquavita, o quirche, a cidra, o poteen, o arac, o uísque e as aguardentes vínicas como o conhaque, o armanhaque, o brandy, o ouzo, a mastika, o pisco e outras, antes da bebida brasileira. Portanto a origem da palavra “aguardente” nada tem a ver com açoite de escravos com lombo molhado de cachaça. Pura fantasia inverossímil, implausível.
4º) “Cachaça” e “garapa” são termos falados e escritos no Brasil, em várias acepções, desde o Século XVI, a partir das atividades dos primeiros engenhos e da invenção da bebida. A palavra “cachaça”, a nossa aguardente de cana-de-açúcar, não começa a circular apenas “até a terceira década do século XVII, quando surgem as primeiras notícias da aguardente da cana-de-açúcar destilada em alambiques”, como afirma, equivocadamente, o artigo. Encontramos a palavra “cachaça” escrita designando a nossa aguardente de cana-de-açúcar, no início do século XVII nos Anais da Câmara de Salvador, Bahia. Antes disto, Gabriel Soares de Sousa, no seu Tratado Descritivo do Brasil em 1587, registra uma “casa de cozer meles com muita fábrica” também na Bahia, onde se produzia açúcar, melado, rapadura e cachaça. Outrossim, aguardente de cana-de-açúcar só poderia ser destilada em alambiques e não por qualquer outro processo. Ademais, “agoa ardente”, “água ardente”, “aguardente” sempre foi dito e escrito desde o Descobrimento. “Aguardente da terra” em oposição à “aguardente do reino” ou “aguardente de fora” antecedeu à “geribita da terra” ou ”giribita da terra” (ou jeribita ou jiribita… existem diversas outras formas) com a mesma antítese, ainda no Século XVII, é verdade. Antes de aguardente, geribita e cachaça, mais precisamente nos séculos XVI e XVII, muito mais se falou e se escreveu mel de cana, vinho de cana, vinho de mel, vinho de mel de cana.
5ª) Outra conclusão vesga do artigo da revista: Tomás Antônio Gonzaga não criou expressão “cachaça ardente”. Quando nos versos da 5ª Carta , da obra Cartas Chilenas (1788-9) – “Pois a cachaça ardente que o alegra, / Lhe tira as forças dos robustos membros” – o bardo mineiro não criou neologismo ou sinonímia alguma para a cachaça. Apenas expressou-se poeticamente, sem metáfora, adjetivando sem originalidade a bebida, repetindo um julgamento comum e indestrutível: Cachaça é uma água ardente saborosa, que arde, que queima prazerosamente, pelo volume de álcool que contém e pela sua acidez natural e necessária, e que, entretanto, desce macia, sem queimar, deliciosamente pela garganta e esôfago até o estômago. Gonzaga antecipa-se ao comerciante inglês John Luccock que publica em Londres, em 1818, o que viveu no Brasil dez anos antes: “Provei e adorei as águas de fogo de Paraty”. A cachaça não apenas esquenta o corpo e o espírito, provoca “sensação de calor” como informa o artigo. Antes de aquecer o corpo e o coração, antes de alimentar a alma, cachaça, na boca, quando inunda a boca, arde realmente. E assim deve ser. E essa doce e orgástica ardência é uma das suas mais sublimes e misteriosas virtudes.
6ª) A cachaça Anísio Santiago (ex- Havana), de Salinas, MG, não é uma das mais antigas e tradicionais do Brasil. Quem escreveu isto sabe de cachaça tanto quanto o sertanejo de Bebe-Mijo, no Piauí, sabe de esqui no gelo. Leitura de mídia superficial, errônea e leviana. Para uma bebida que está fazendo 475 anos de vida, uma cachaça de quatro, cinco décadas não significa coisa alguma. Além de não ser cachaça mas apenas uma cachaça mal envelhecida, filha de uma desconhecida cachaça ruim – a Anísio Santiago não possui excelência sensorial alguma. Trata-se de bebida apenas ingerível por quem conhece cachaça, mas nunca saborosa, com qualidade sensorial superior. Minas consome cachaça desde a descoberta do ouro, porém fabrica há menos dois séculos. Salinas, por outro lado, não tem cachaça nem tradição. Produz, há algumas décadas, e em quantidade, cachaça envelhecida de má qualidade, tingidas em madeiras agressivas, oriundas de pingas ruins que não chegam ao mercado, que são escondidas pelos seus fabricantes. Se a Revista quisesse ilustrar o texto com algum rótulo deveria fazê-lo com o de alguma cachaça de Paraty, RJ, o mais antigo centro produtor de cachaça do mundo, que exibe mais de quatrocentos anos de tradição, ciência, arte, excelência na fabricação de cachaça. A Coqueiro e a Corisco, ambas de Paraty, por exemplo, as melhores cachaças que existem, são feitas por famílias que produzem cachaça, no mínimo, há mais de duzentos anos, ininterruptamente, de pai para filho. Sabedoria e mestria entre gerações.
A Revista já havia publicado, em 2006, artigo sobre a cachaça prenhe de equívocos e imprecisões de toda ordem. A brasileira Cachaça é desejo de bilhões de terráqueos, bebida de milhões de consumidores, curiosidade de milhares de habitantes, interesse de centenas de intelectuais. Mas assunto para muito poucos.
Cordialmente,
(*) MARCELO Nóbrega da CÂMARA Torres, 58, jornalista, escritor, editor e consultor cultural. Cachaçólogo, é autor de Cachaças bebendo e aprendendo – Guia prático de degustação / drinking and learning – Practical guide to tasting (Mauad, 2006), primeiro e único livro de degustação de cachaças, e de Cachaça – Prazer Brasileiro (Mauad, 2004), primeira obra dirigida ao mercado, ao consumidor real e potencial da bebida nacional. Pingófilo por mais de cinqüenta anos, foi o primeiro degustador de cachaças a se profissionalizar, exercendo o ofício de 1994 a 2007.
Depois de 3 meses, a revista publica carta do cachaçólogo e uma resposta dos autores do artigo (seria tempo para pesquisar sobre o assunto?).
Ficamos satisfeitos com sua manifestação, especialmente pela oportunidade de discutir um tema quase sempre tratado com simplicidade.
Uma matéria despretensiosa e breve como a que publicamos na revista, dividindo espaço no dossiê “Fatos ou versões?” com outros muitos assuntos sobre os quais a história apresenta “tradições inventadas”, não pretendia ser mesmo conclusiva. Mas ela está longe de ser falha e desinformar como v. afirma. Tampouco o artigo “Pinga, cachaça, jeribitas” publicado no número 13 da Revista Nossa História [Biblioteca Nacional, 2004], assinado por um dos autores, traz as imprecisões sugeridas pelo crítico.
Ao contrário, os textos publicados nas revistas de História da Biblioteca Nacional apresentam elementos novos sobre o tema, fruto de pesquisas documentais e análises com os quais talvez v. não esteja familiarizado, o que é compreensível por não se tratar de um historiador. Melhor ficará nosso diálogo se reconhecermos a posição de onde falamos. Nem lá, nem aqui, vamos, historiadores, nos arvorar em julgar as características sensoriais e etílicas da cachaça hoje em dia, que é a sua especialidade.
Sobre os textos que circulam na internet, alvos também de sua carta, nada podemos lhe responder. Mas não misture o conteúdo destes (e de outros “sites e arquivos [que] habitam a Internet”) com o que foi publicado na Revista. A liga não é boa e pode ser caracterizada como má fé. Troquemos conhecimento e ganharemos todos, inclusive os leitores para os quais esse debate se destina.
Afinal, seu grande conhecimento da história da cachaça, especialmente das muitas citações que o tema mereceu nas fontes impressas, contudo não o deixou livre de algumas imprecisões. E uma boa dose de anacronismo. Você menciona a “nossa aguardente”, “a brasileira ‘cachaça’” quando ela foi inventada pelos portugueses em terras da América que viriam a ser o Brasil. Ela nasce portuguesa, associada à experiência da colonização, empregada com sucesso nas trocas do tráfico negreiro. Só mais tarde, já nos idos do século XIX, seria identificada com o nativismo.
Em Pernambuco, durante a Revolução de 1817, repleta de ideais revolucionários e autonomistas, quando rebeldes levantavam um brinde ao sucesso do movimento, o padre João Ribeiro, diante do viajante francês Tollenare, sugeriu que bebessem aguardente de cana e não vinho do Porto.
Filtrando as associações indevidas que o crítico sugere com opiniões sobre a cachaça que não foram publicadas na revista (que dominam 3 dos 6 itens que enumera em sua carta) e as observações gerais a respeito da aguardente, que endossamos, podemos rebater suas críticas.
Os engenhos eram uma usina de diferentes tipos de bebidas derivadas da cana –algumas delas alcoólicas graças à fermentação e não a destilação, como é o caso dos “vinhos” que v. cita – que os cronistas descrevem muito bem. O artigo menciona algumas delas e registra o nascimento do uso da palavra “cachaça” aplicado à bebida destilada. Antes disso, como v. mesmo lembrou, “cachaça” nomeava a matéria desprezada da preparação do açúcar nos engenhos. O trecho mencionado de Gabriel Soares de Souza não abona seu argumento. Ele reitera a diversidade de produtos do engenho. A “casa de cozer meles” no registro de 1587 não indica que aí se destilava.
Descrições de cronistas, missionários, mapas de arrecadação fiscal, relatórios administrativos da situação dos engenhos, e mesmo as leis que trataram de regular o comércio e a tributação sobre o açúcar, no século XVI e ainda nas primeiras décadas do século XVII, não mencionam a existência de aguardente, nome que parece associado à destilação ( ver por exemplo, Marcos C. de Mendonça. Raízes da formação administrativa do Brasil. 2 v. Rio de Janeiro: IHGB/CFC, 1972. Livro 1º do governo do Brasil (1607-1633). Lisboa: CNCDP, 2001 e Livro 2º do governo do Brasil (1615-1634). Lisboa: CNCDP/Museu Paulista-USP, 2001.)
Esse período de letargia de fermentados, do vinho ora da uva, ora do mel de açúcar ou de abelha, se arrastou até pelo menos a terceira década do século XVII, quando surgiram as primeiras notícias da aguardente da cana-de-açúcar destilada em alambiques. Em São Paulo há notícias do comércio de aguardente em suas vendas em 1638 nas Atas da Câmara.( A. Almeida Júnior. Sobre o aguardentismo colonial. Revista do Arquivo Municipal 6(72):155-164. São Paulo, nov./dez. 1940.) Na capitania de Pernambuco, ao longo do século XVII, muitas pipas já atendiam a exportação para Angola em troca de africanos, pagando direitos ao rei e ao contratador. No início do século seguinte, estimava-se em 350 o número de pipas de aguardente que Pernambuco exportava (Danilo Fragoso. Os rótulos na história da aguardente – II. Brasil Açucareiro 82(3):285. Rio de Janeiro, set. 1973.); na Bahia não foi diferente: havia 39 alambiques na capital e 32 no Recôncavo, e toda a produção era consumida localmente.( Stuart B.Schwartz. Segredos internos – engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835. São Paulo: Companhia das Letras/CNPq, 1988. p. 205.)
Aos poucos os engenhos seriam dotados de construções especiais para destilar seus derivados. Sebastião da Rocha Pitta mencionava, em 1724, a existência nas fazendas de açúcar do Recôncavo Baiano de casas para “reduzir a águas ardentes” (Sebastião da Rocha Pitta. História da América portuguesa. Belo Horizonte-Itatiaia-São Paulo: Edusp, 1976, p. 49).
Mas a data não é definitiva já que novos registros podem aparecer, desde que citados. Aliás deveria ser citada também pelo crítico a ocorrência prévia da expressão “cachaça ardente”, lavrada por Tomás Antonio Gonzaga nas “Cartas Chilenas”. Do contrário, o artigo está correto ao indicar o neologismo. Não se enxerga mais longe trazendo impressões pessoais, generalizações ou registros a posteriori para invalidar argumentos fundamentados em pesquisas.
A ardência que a cachaça provoca hoje não é a mesma da de ontem. O consumo da aguardente de cana possuía sentido bem distinto. Era medicinal. Sua virtude era conter humores quentes, benéficos à saúde segundo a medicina da época que combatia os males dos humores frios que o corpo segredava. A bebida que arde é aquela que aquece e, segundo se acreditava, cura.
Tradição não se conta apenas pelo número de anos. A revista optou pelo rótulo da Anísio Santiago para a ilustração devido a sua tradição entre as cachaças de Minas, ainda que tenha pouco mais de 60 anos, pois é produzida desde 1943. Para a tradição conta também a intensidade da experiência da produção de aguardente no território, com cerca de 200 engenhos no início do século XVIII, 1.000 alambiques em 1827 e 1.729 em meados do século XIX. Em 1906 Minas aparece exportando 645.854 litros!
Se não bastassse a intensidade da produção, não convém a desqualificação diante de um produtor que foi capaz de construir uma marca com a Havana-Anisio Santiago, com pequena produção e que, conforme, testemunhos foi dono de grande habilidade técnica. Além de importante região produtora, há hoje em Salinas (Minas Gerais) um curso de especialização na produção de cachaça.
Hoje em dia o debate histórico sobre a cachaça transcorre em meio a um grande interesse no tema por parte dos estudiosos e, ao que parece, dos consumidores. Basta olharmos para algumas publicações recentes que têm iluminado os caminhos do entendimento. Destaco a tese de Marcelo Magalhães Godoy, No país das Minas de ouro a paisagem vertia engenhos de cana e casas de negócios (USP, 2004) e o livro de Jose C. Curto Enslaving Spirits: The Portuguese-Brazilian Alcohol Trade at Luanda and its Hinterland, c. 1550-1830. Atlantic World Series. Leiden: Brill, 2004, e o livro Cachaça: Alquimia Brasileira, Repsol YPF, 2005, no qual um dos signatários dessa participou. A pesquisa histórica a respeito da época colonial está no capítulo “Águas ardentes: o nascimento da cachaça”, escrito em parceria com Renato Venâncio.
Não se preocupe com os rótulos. Gostamos, e muito, também da “parati”, que tem seu lugar assegurado na história. Especialmente para quem pratica o versinho lendário de Oswald de Andrade: “farinha de suruí, /pinga de parati/fumo de Baependi/ É come bebê pita e caí”.
E com esse bom espírito vamos dividir o “assunto”, seja ele história ou degustação. Quem sabe assim ele deixa de ser “assunto para muito poucos”?
Cordialmente,
Luciano Figueiredo e Marcelo Scarrone
Na minha opinião de historiador, dentro desta polêmica, o jornalista e cachaçólogo perdeu a oportunidade de ficar calado. Sobretudo quando critica sem qualquer conhecimento a cachaça mineira representada pela Havana (SIM HAVANA! Osvaldo Santiago tem uma liminar para o uso do nome). A cachaça Havana tem um dos melhores processos de envelhecimento de cachaça. Triste quando as pessoas tentam defender regionalismos arrotando sinônimos para disfarçar incoerências e falta de conhecimento.
A respeito do seguinte trecho:
“Bebida da espécie “destilado” e pertencente à categoria das “aguardentes”, a Cachaça foi inventada no Brasil entre 1533 e 1534 pelo colonizador Martim Afonso de Souza e seus quatro sócios (três lusos e um holandês), em plena Mata Atlântica, nos três primeiros engenhos de açúcar construídos pelos cinco no Brasil (as primeiras indústrias do País), em São Vicente (hoje o local pertence a Santos): Madre de Deus, Santo Antônio e São Jorge, este conhecido, também como “dos Erasmos” ou “do Governador”, único do qual restam ruínas. Martim Afonso trouxe o primeiro alambique para a terra recém-descoberta, engenhoca utilizada na Península Ibérica desde o início da Idade Média, e destilou a cana, cujas primeiras mudas chegaram à nova terra pelas mãos de Gonçalo Coelho em 1502.”
Gostaria de saber a(s) fonte(s) das informações de que:
a) A cachaça foi inventada no Brasil entre 1533 e 1534 pelo colonizador Martim Afonso de Souza e seus quatro sócios…
b)Martim Afonso trouxe o primeiro alambique para a terra recém-descoberta…
Sou apenas colecionador de cachaças e curioso sobre sua história e até o momento não encontrei nenhum registro que corroborasse tais afirmações.
Obrigado
Você poderia me informar algum e-mail de alguém que possa me dar informações sobre o processo de fabricação de cachaça?
Agradeço
Olá Getúlio,
Nós somos apreciadores da boa cachaça; já o processo de obtenção, ficaria difícil dizer…
Vou encaminhar o seu pedido para alguns amigos que conhecem melhor o assunto e quem sabe algum te ajuda.
Fica aqui um link do Wikipedia
Grato,
Gostaria de saber mais sobre o processo técnico de produção de cachaça de açucar.
Agradeço qualquer informação.